O ritual cotidiano de preparar e oferecer com excelência o sustento vital para cada um dos seus clientes.
Esse foi o enfoque principal de Tsuyoshi Murakami, chef do Restaurante Kinoshita, ao participar da série “Curso no Museu”, promovido pelo Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil.
O encontro aconteceu no último dia 7 de abril, no 9º andar do Museu, com cerca de 40 pessoas – ocasião em que o convidado preferiu responder perguntas à simplesmente discorrer sobre o tema “Beleza à Mesa”.
O Kinoshita, reconhecido entre os melhores (e premiados) restaurantes japoneses do Brasil, é uma das casas mais emblemáticas na trajetória na culinária japonesa na capital paulista.
O restaurante nasceu pelas mãos de Toshio Kinoshita, um emigrante de Hokkaido, que chegou ao Brasil em 1961 com a mulher Tachiyo. Barbeiro, montou um salão na Liberdade. Ajudado por um amigo, deixou esse negócio e, em 1976, abriu um restaurante ao lado da antiga barbearia, na Rua Tomás Gonzaga. Em meados da década de 1980 mudou para a Rua da Glória.
Localizado no coração do bairro da Liberdade, o espaço rapidamente firmou-se como um dos concorridos restaurantes do núcleo pioneiro da culinária japonesa na cidade. Tornou-se um local-referência não só para quem desejava saborear a comida japonesa (e conhecia o básico da língua!) durante a semana, ou nas reuniões familiares (ou de amigos!) de final de semana.
Por isso mesmo, tinha um cardápio extenso que abarcava desde os sashimi e sushi, passando pelos menrui (macarrão) até os nabemono (cozidos).
Restaurante familiar como outros daqueles anos 1960/70/80, não raro, no final do expediente, o próprio Kinoshita enrolava seu avental e se misturava aos fregueses para um animado bate-papo.
Cada um tinha seu prato predileto como motivo para frequentar o Kinoshita. Um dos grupos memoráveis que se reunia para o almoço do sábado era constituído por jornalistas da velha guarda (eram amigos, embora trabalhassem em jornais concorrentes!) e funcionários de diferentes empresas nikkeis (por exemplo, Banco América do Sul). Os pratos pedidos eram variados, mas a unanimidade entre eles era o kare raisu (arroz com curry).
O molho de curry denso e cheiroso, cor de terra, fazia contraste com o arroz branco que, muitas vezes, era complementado por um ovo frito ou bife de carne suína ou bovina à milanesa. Isso regado à cerveja (é bem verdade que nos últimos anos, a bebida preferida era o chá!) acompanhado de um bom papo, que atualizada os acontecimentos da semana! para esse grupo, que foi sendo reduzido pelas contingências da vida (ou da morte!). Os encontros semanais persistiram até início da década de 1990.
Mas, voltando à história, desde a década de 1980, ficavam cada vez mais evidentes as mudanças no cenário do bairro da Liberdade e nos restaurantes japoneses.
A tranquilidade do bairro dos japoneses começou a ser “invadida” pela “urbanidade”: os luminosos e placas em ideogramas japoneses começavam a perder seu poder de comunicação – melhor seria adotar definitivamente as letras romanas, exclusivamente.
Emblemático, nessa época, foi o surgimento da Estação Liberdade do Metrô em contraste com os tyotins (luminárias em forma de lanternas) reforçando a identidade local.
Quanto aos restaurantes japoneses, alguns resolveram subir a Avenida Brigadeiro Luiz Antônio em direção à avenida Paulista para aproximar-se da concentração das empresas japonesas que, desde a década de 1970, estacionaram em território brasileiro.
Os restaurantes que permaneceram no território da Liberdade sofreram uma “amigável” invasão, a presença dos não falantes da língua japonesa: os gaijin (estrangeiro) – nós ou eles?
Nesse burburinho de mudanças, a geração pioneira deixou o comando para as próximas, não só nos restaurantes, mas nas lojas, nos escritórios, mas agências de viagens, etc.
Foi em 1995 que o balcão dos sashimi/sushi do Kinoshita passou a ser ocupado por um belo jovem sushiman, falante e carismático que, combinava a excelência dos peixes com longos papos e histórias trazidas por ele. Com leve sotaque carioca, impecável na língua japonesa, Murakami reportava suas passagens pelos restaurantes do mundo!
Bom, a história, a partir disso, todos sabem – ele virou genro do proprietário e, junto com Suzana, a eleita, deixaram a Liberdade com destino a Vila Nova Conceição.
O pioneiro Toshio (falecido em 2011) deixou para seus sucessores o Kinoshita, que se transformou num dos respeitados restaurantes da alta gastronomia tradicional japonesa entre nós.
O chef Murakami, que prefere ser chamado por seu primeiro nome, Tsuyoshi, trouxe para seu público o kappo ryori, sem tradução exata para o português, que dá margem para diferentes interpretações. Certamente, uma delas resulta da combinação entre a alta e sofisticada gastronomia com a ousada criatividade do chef.
Mas, na noite da palestra no Museu da Imigração Japonesa, ele preferiu a simplicidade: “é a comida feita na frente do cliente, quando a gente envolve-o nesse processo todo” – acho que é mais do que isso, mas se o chef disse…
“Se pensar muito não dá. A apresentação de cada prato sai naturalmente”, ensina o chef, lembrando o ritual de um mestre de shodô diante de um papel washi e seu pincel. Em segundos a caligrafia está pronta, como o gesto final de um longo caminho de preparativos e vivências.
Tsuyoshi contou que a inspiração de sua culinária está ancorada na “comida da mamãe”, com a simplicidade original do arroz, misoshiro, fazer o chá, “todos preparados com muito amor”.
Durante sua palestra, falou sobre a relação intrínseca que o cozinheiro tem com os elementos essenciais da preservação da vida e o oferecimento desse sustento vital aos seus visitantes.
“Não se trata de fartar-se, ficar com a barriga cheia até não se aguentar”, ensina. “Aqui vale o ditado, o menos vale mais, ou seja, servir-se o suficiente para renovar as energias”.
Nesta noite de palestra, várias vezes, o chef também se referiu ao “Kinoshita Education”, que busca no cotidiano do restaurante transmitir aos seus funcionários e estagiários os preceitos básicos essenciais de quem se propõe a preparar o alimento com excelência. Uma forma, certamente, de se manter fiel à tradição.
Só para terminar a história: o kare rice não é mais servido no Kinoshita, apesar de os clientes ainda pedirem.